segunda-feira, 7 de março de 2011

Cora Coralina: Homenagem ao Dia Internacional da Mulher

O Poeta e a Poesia




Não é o poeta que cria a poesia.E sim, a poesia que condiciona o poeta. Poeta é a sensibilidade acima do vulgar. Poeta é o operário, o artífice da palavra. E com ela compõe a ourivesaria de um verso. Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,procurando no jogo das palavras, no imprevisto texto, atingir a perfeição inalcançável. 


O autêntico sabe que jamais chegará ao prêmio Nobel. O medíocre se acredita sempre perto dele. Alguns vêm a mim.  Querem a palavra, o incentivo, a apreciação. Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro...Tão pobre ainda a sua bagagem cultural, tão restrito seu vocabulário, enxugando lágrimas que não chorou, dores que não sentiu, sofrimentos imaginários que não experimentou. 


Falam exaltados de fome e saudades, tão degastadas de tantos já passados. Primário nos rudimentos de sua escrita e aquela pressa moça de subir. Alcançar estatura de poeta, publicar um livro. Oriento para a leitura, reescrever, processar seus dados concretos. Não fechar o caminho, não negar possibilidades. É a linguagem deles, seus sonhos. A escola não os ajudou, inculpados, eles. Todos nós temos a dupla personalidade.


O id e o ego. Um representa a sua vida física, material completa. Pode ser brilhante, enriquecida de valores que ajudam a ser felizes, pode ser angustiada e vacilante, incerta, insatisfeita. Mesmo possuindo o que deseja, nada satisfazendo.


O id representa sua vida interior paralela, ambivalente, exercendo seu comando em descargas nervosas, no eterno conflito entre a razão e o impulso incontrolado. Dupla vida inter e extra, personalidade se contrapondo. Pode ser trivial e dependente, podemos fazê-la rica e cheia de nobreza, nos valendo da força incomensurável do pensamento positivo emanado da vida interior que é o nosso mundo, invisível a todos, sensível ao nosso ego. 


Há sempre uma hora maldita na vida de um homem. Pode levá-lo ao crime e às paredes sombrias de uma cela escura. Um curto circuito nas suas baterias carregadas, uma descarga nas linhas de transmissão potencial. Daí, fatos aberrantes que surpreendem. Conclusões demolidoras de um passado brilhante. Eu Creio. Creio nos valores humanos e sou a mulher da terra ...


Creio na força do trabalho como elos e trança do progresso. Acredito numa energia imanente
que virá um dia ligar a família humana numa corrente de fraternidade universal. Creio na salvação dos abandonados e na regeneração dos encarcerados, pela exaltação e dignidade do trabalho ...


Acredito nos jovens à procura de caminhos novos abrindo espaços largos na vida. Creio na superação das incertezas deste fim de século. Considerações de Aninha Melhor do que a criatura, fez o criador a criação. A criatura é limitada. O tempo, o espaço, normas e costumes. Erros e acertos. A criação é ilimitada. Excede o tempo e o meio. Projeta-se no Cosmos. 


Todas as Vidas Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo.Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo...


Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d'água e sabão.Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. 


Sua coroa verde de São Caetano. Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã.Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim a mulher do povo.Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca grossa,de chinelinha e filharada. 


Vive dentro de mim a mulher roceira. Enxerto da terra, meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira.Bem criadeira. Seus doze filhos. Seus vinte netos. Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... 


Fingindo alegre seu triste fado. Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida, a vida mera das obscuras. Mulher da Vida Mulher da Vida, minha Irmã. De todos os tempos. De todos os povos. De todas as latitudes. Ela vem do fundo imemorial das idades e carrega a carga pesada dos mais torpes sinônimos, apelidos e apodos: Mulher da zona, Mulher da rua, Mulher perdida, Mulher à-toa. Mulher da Vida, minha irmã. Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.

Desprotegidas e exploradas. Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito. Necessárias. Indestrutíveis.Sobreviventes. Possuídas e infamadas sempre por aqueles que um dia as lançaram na vida. Marcadas. Contaminadas, Escorchadas. Discriminadas. Nenhum direito lhes assiste.


Nenhum estatuto ou norma as protege. Sobrevivem como erva cativa dos caminhos, pisadas, maltratadas e renascidas. Flor sombria, sementeira espinhal gerada nos viveiros da miséria, da pobreza e do abandono, enraizada em todos os quadrantes da Terra.


Um dia, numa cidade longínqua, essa mulher corria perseguida pelos homens que a tinham maculado. Aflita, ouvindo o tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras, ela encontrou-se com a Justiça. 


A Justiça estendeu sua destra poderosa e lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra”. As pedras caíram e os cobradores deram 
as costas. O Justo falou então a palavra de eqüidade: “Ninguém te condenou, mulher...nem eu te condeno”. 


A Justiça pesou a falta pelo peso do sacrifício e este excedeu àquela. Vilipendiada, esmagada. Possuída e enxovalhada, ela é a muralha que há milênios detém as urgências brutais do homem para que na sociedade possam coexistir a inocência, a castidade e a virtude. 


Na fragilidade de sua carne maculada esbarra a exigência impiedosa do macho. Sem cobertura de leis e sem proteção legal, ela atravessa a vida ultrajada e imprescindível, pisoteada, explorada, nem a sociedade a dispensa nem lhe reconhece direitos nem lhe dá proteção.E quem já alcançou o ideal dessa mulher, que um homem a tome pela mão, a levante, e diga: minha companheira. Mulher da Vida, minha irmã. 


No fim dos tempos. No dia da Grande Justiça do Grande Juiz. Serás remida e lavada de toda condenação. E o juiz da Grande Justiça a vestirá de branco em novo batismo de purificação. Limpará as máculas de sua vida humilhada e sacrificada para que a Família Humana possa subsistir sempre, estrutura sólida e indestrurível da sociedade, de todos os povos, de todos os tempos. Mulher da Vida, minha irmã.



Fonte: http://blogs.abril.com.br/sandraebisawa/2009/12/sobre-cora-coralina-as-tantas-mulheres-viventes-num-so-corpo.html

Um comentário:

  1. Obrigada, pela homenagem a nós, mulheres! Gostei muito do seu blog.... também sou sua seguidora! bjk

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